segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Basu (2017)

BASU, Deepankar. Quantitative empirical research in Marxist political economy: a selective review. Journal of Economic Surveys, v. 31, n. 5, p. 1359–1386, 2017. DOI: 10.1111/joes.12218. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/joes.12218.


6. Análise de Rentabilidade

A economia política marxista entende o capitalismo como um sistema movido pela lógica da acumulação de capital. Como a taxa de lucro é um determinante fundamental da acumulação de capital, uma vasta literatura marxista se desenvolveu em torno da análise da rentabilidade, com pelo menos duas vertentes principais. A primeira vertente foca no que podemos chamar de análise de decomposição, onde os movimentos temporais de curto ou médio prazo na taxa de lucro são, por um lado, usados para explicar os principais desenvolvimentos nas economias capitalistas e, por outro, explicados pelos movimentos de seus componentes, devidamente definidos. Uma das questões substantivas centrais que motivam essa vertente da análise de rentabilidade tem sido a possível relação entre a taxa de lucro e as crises estruturais do capitalismo. Uma segunda vertente, mais recente, analisa os movimentos de longo prazo na taxa de lucro e utiliza análises econométricas para abordar empiricamente a lei de Marx sobre a tendência de queda da taxa de lucro (entendida como um fenômeno de longo prazo).

6.1 Análise de Decomposição

A análise de decomposição ocorre em duas modalidades, determinadas pelo período de tempo da análise: uma análise de médio prazo e uma análise de curto prazo.

6.1.1 Análise de Decomposição de Médio Prazo

Quando uma perspectiva de médio prazo é adotada, as flutuações da demanda agregada são abstraídas. Assim, para estudar os fatores determinantes da rentabilidade em uma escala de tempo de médio prazo, uma decomposição da taxa de lucro em participação nos lucros e a relação entre produto e capital é tipicamente utilizada, ou seja:





6.1.2 Análise de Decomposição de Curto Prazo

Quando o interesse é uma análise de rentabilidade de curto prazo, a decomposição da taxa de lucro inclui três termos. Além da tecnologia e da distribuição, a taxa de utilização da capacidade é usada como uma variável para capturar o efeito das flutuações na demanda agregada. Considerando Z como a capacidade de produção, a decomposição em três partes pode ser escrita como:

O primeiro termo à direita, Π/Y, é a participação dos lucros, o segundo termo, Y/Z, é a taxa de utilização da capacidade, e o último termo, Z/K, é a relação capacidade-capital. Assim como na análise de médio prazo, cada um dos três termos da decomposição é, adicionalmente, desagregado em seus componentes reais e nominais para estudos mais detalhados e aprofundados. Seguindo o trabalho pioneiro de Weisskopf (1979), muitos estudiosos têm utilizado e ampliado essa vertente da literatura (por exemplo, Henley, 1987; Bakir e Campbell, 2009; Kotz, 2009; Izquierdo, 2013; Basu e Das, 2015).

6.2 Análise Econométrica da Tendência de Queda da Taxa de Lucro (LTFRP)

A afirmação de Marx no Volume III de *O Capital* de que a taxa de lucro tende a cair com o desenvolvimento capitalista, o que ele chamou de lei da tendência de queda da taxa de lucro (LTFRP), gerou uma enorme literatura nas últimas décadas. Embora a literatura teórica tenha desenvolvido argumentos sofisticados, a literatura empírica sobre esse tema, até muito recentemente, era relativamente pouco desenvolvida. Muitos pesquisadores limitaram-se a utilizar análises exploratórias de dados, como a inspeção visual de gráficos de séries temporais ou o ajuste de linhas de tendência às séries de taxas de lucro, para testar a validade da LTFRP.

Basu e Manolakos (2013) apontaram duas falhas importantes na literatura empírica existente. Primeiro, ela não considerava as propriedades de séries temporais da taxa de lucro. Isso era crucial, pois o fato de a série da taxa de lucro ser estacionária ou não estacionária teria implicações significativas nas análises empíricas de seu comportamento de longo prazo, incluindo a validade da LTFRP. Segundo, o relato de Marx sobre a LTFRP atribuía um papel importante aos fatores contrapostos, mas nenhum dos estudos existentes levava isso em consideração [13]. Basu e Manolakos (2013) argumentaram que a falha em considerar o efeito dos fatores contrapostos na série temporal observada da taxa de lucro invalidaria qualquer teste da LTFRP.

[13]: As únicas exceções foram Feldstein e Summers (1977) e Michl (1988). Embora esses estudos tentassem considerar alguns dos fatores contrapostos, eles não levaram em conta as propriedades de raiz unitária da taxa de lucro (ou de alguns dos fatores contrapostos).

O segundo ponto é importante e merece alguma discussão. No Volume III de *O Capital*, Marx apresentou um argumento simples e poderoso para a tendência de queda da taxa de lucro (LTFRP). A competição capitalista e a luta entre capital e trabalho levam as empresas capitalistas a adotar mudanças técnicas que economizam trabalho. O viés pronunciado da mudança técnica no capitalismo se expressa na mecanização inexorável do processo produtivo. Isso resulta no crescimento contínuo da composição orgânica do capital, que pressiona a taxa de lucro para baixo. Após expor esse argumento para a LTFRP, Marx imediatamente observa a presença de poderosos "fatores contrapostos" nas economias capitalistas que poderiam interromper ou até mesmo reverter a LTFRP: (1) o aumento da intensidade da exploração do trabalho, que poderia elevar a taxa de mais-valia; (2) o barateamento relativo dos elementos do capital constante; (3) o desvio da taxa salarial em relação ao valor da força de trabalho; (4) a existência e o aumento de uma população relativa excedente; e (5) o barateamento dos bens de consumo e de capital por meio das importações. Marx também mencionou o aumento do capital acionário como um sexto fator contraposto. No entanto, a relação entre o capital acionário e a taxa de lucro não é clara e, por isso, podemos abstrair essa variável, seguindo Foley (1986).

O ponto importante é que, em períodos em que os fatores contrapostos eram fracos, a taxa de lucro tendia a cair; já em períodos em que os fatores contrapostos eram fortes, a taxa de lucro deixava de cair e poderia até mesmo subir. O resultado disso é que a série observada da taxa de lucro não apresentaria uma tendência secular de queda. Portanto, nem a inspeção visual de gráficos de séries temporais nem o ajuste de linhas de tendência à série da taxa de lucro eram métodos corretos para testar a validade da LTFRP. Para testar a LTFRP, seria necessário, primeiro, remover o efeito dos fatores contrapostos da série da taxa de lucro e, somente então, investigar a presença de uma tendência de queda no longo prazo. É exatamente isso que uma análise de regressão pode fazer. Assim, Basu e Manolakos (2013) desenvolveram um modelo econométrico para testar a LTFRP, no qual eles regrediram o logaritmo da taxa de lucro sobre uma constante e uma tendência linear de tempo, controlando o efeito dos fatores contrapostos ao incluí-los no modelo como covariáveis adicionais. Após lidarem com a possibilidade de regressão espúria e utilizarem dados da economia dos Estados Unidos para o período de 1948 a 2007, encontraram evidências que apoiam a LTFRP: a taxa de lucro declinou 0,2% ao ano durante o período analisado, após os fatores contrapostos terem sido controlados.

Medição da Utilização da Capacidade - Anwar Shaikh

APÊNDICE 6.6 - Medição da Utilização da Capacidade

I. Medidas Convencionais de Utilização da Capacidade

II. Uma Nova Abordagem para Medir a Utilização da Capacidade

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O Mercado de Ações e o Setor Corporativo: Uma Abordagem Baseada em Lucros - Anwar Shaikh

SHAIKH, Anwar. The Stock Market and the Corporate Cector: a profit-based approach. In: ARESTIS, Philip; PALMA, Gabriel; SAWYER, Malcolm (org.). Markets, Unemployment and Economic Policy: Essays in Honour of Geoff Harcourt. Volume Two. London; New York: Routledge, 1997. p. 389–404.

Resumo

Este artigo demonstra que os movimentos empíricos dos preços das ações podem ser explicados diretamente por fundamentos. Mostra-se que a taxa real de retorno do mercado de ações acompanha de perto a taxa real incremental de lucro do setor corporativo, com ambas apresentando médias e desvios padrão similares. Argumenta-se que essas duas variáveis estão conectadas por fluxos de capital entre os setores por meio de um processo que denominamos "arbitragem turbulenta". Os preços reais das ações acompanham de perto os preços previstos por esse modelo e, ao contrário dos resultados padrão, são menos voláteis do que os preços previstos. A abordagem teórica adotada neste artigo implica que a taxa incremental de lucro é a taxa de retorno exigida para o mercado de ações. A volatilidade observada nos retornos e nos preços do mercado de ações decorre do fato de que a taxa exigida é altamente volátil, sendo influenciada por flutuações cíclicas e outras variações de curto prazo na demanda agregada. Assim, torna-se evidente por que os modelos teóricos convencionais, que tipicamente assumem taxas de retorno exigidas (taxas de desconto) constantes e taxas de crescimento de dividendos constantes, são em grande parte incapazes de explicar os movimentos nos preços das ações. Por outro lado, como a taxa incremental de lucro (líquida de juros) é essencialmente a mudança nos lucros normalizada pelo investimento, as conclusões deste artigo estão alinhadas com a experiência "do mercado", segundo a qual os movimentos nos preços das ações são impulsionados pelas taxas de juros e pelas mudanças nos lucros.

1. Introdução

Este artigo demonstra que o nível e a volatilidade da taxa de retorno do mercado de ações podem ser explicados diretamente por fundamentos – definidos aqui como a taxa incremental de lucro no setor corporativo. Argumenta-se que essas duas taxas estão vinculadas pela mobilidade de capital entre setores. Isso implica, entre outras coisas, que a taxa incremental de lucro real é a taxa de retorno "exigida" para o mercado de ações.

Como princípio geral, retornos mais altos em qualquer setor tendem a acelerar os influxos de capital para ele, enquanto retornos mais baixos tendem a desacelerá-los. Em uma economia competitiva, esse mecanismo fundamental tende a equalizar as taxas de retorno (ajustadas ao risco) entre os investimentos e os setores. Diversos ramos da teoria econômica, como a teoria da firma, a lei do preço único, a teoria financeira e até mesmo o princípio do valor presente, dependem diretamente desse mecanismo [Dybvig e Ross 1992, p. 43; Mueller 1986, p. 8; Diermeier, Ibbotson e Siegel 1984, p. 74].

O fato de que o capital pode se mover entre diversas aplicações implica que a avaliação de qualquer investimento deve sempre ser relativa às alternativas perdidas ao realizá-lo. Este custo de oportunidade fundamenta a noção de uma taxa de retorno de referência ("exigida"), à qual o retorno real de qualquer investimento deve ser comparado a qualquer momento e com a qual tende a se equalizar ao longo do tempo [Ibbotson Associates 1994, pp. 129-130].

Sob certas suposições adicionais (como taxas de retorno exigidas constantes ou mudando lentamente), pode-se derivar o valor presente descontado (PV, na sigla em inglês) padrão e os modelos de desconto de dividendos (fluxo de caixa descontado ou DCF) para precificação de ativos (seção 2). No entanto, esses modelos padrão não apresentam bom desempenho empírico (seção 3). Nossa abordagem, portanto, é um pouco diferente. Partimos da premissa comum de que taxas de retorno ajustadas ao risco tendem a se equalizar entre os setores. Mas, em vez de fazer as suposições adicionais necessárias para chegar aos modelos DCF de precificação de ações, comparamos diretamente a taxa anual de retorno do mercado de ações à taxa incremental de lucro no setor real. Para isso, desenvolvemos uma medida adequada dessa taxa incremental de lucro e mostramos que seus movimentos refletem poderosamente os movimentos da taxa de retorno do mercado de ações (seção 4). Por implicação, os prêmios de risco dos setores são bastante semelhantes. Isso nos permite demonstrar que o mercado de ações é diretamente impulsionado por fundamentos, ou seja, pelos lucros das empresas que emitem ações. Também nos permite avaliar criticamente os modelos DCF padrão.





UMA ABORDAGEM BASEADA EM LUCROS

A noção de que a mobilidade do capital tende a equalizar as taxas de retorno ajustadas ao risco entre setores é fundamental (Cohen et al., 1987: 375). Contudo, do ponto de vista clássico e marxista, a competição cria tanto a tendência de equalizar as taxas de retorno quanto os fatores que diferenciam essas mesmas taxas (como novos produtos, técnicas, etc.). O resultado final é um processo dinâmico e em constante evolução, no qual as taxas de retorno nunca são iguais em um dado momento, mas, em vez disso, flutuam incessantemente umas em torno das outras (Botwinick, 1993: capítulo 5; Mueller, 1986: 8; Mueller, 1990: 1-3). Chamaremos esse processo de “arbitragem turbulenta” para distingui-lo da visão mais convencional de um estado de equilíbrio em que as taxas de retorno são exatamente iguais. A possibilidade de que os fluxos de capital entre o mercado de ações e o setor real igualem suas taxas de retorno levanta uma questão interessante: como isso é possível, dado que investidores individuais (isto é, não capitalistas) desempenham um papel tão grande no mercado de ações? A resposta é que é necessário apenas que os fluxos de capital financeiro adicionem ou subtraiam investimentos suficientes no mercado de ações para regular sua taxa de retorno, em uma escala de tempo relevante. Isso é perfeitamente consistente com modas e tendências, desde que, no final, os fundamentos prevaleçam (Shiller, 1989: 374-6).

Em qualquer processo desse tipo, é amplamente reconhecido que a taxa de retorno sobre novos investimentos é relevante para a mobilidade do capital (Cohen et al., 1987: 375). Ao analisar investimentos industriais, a abordagem tradicional tem sido focar na taxa de retorno ao longo da vida útil do investimento. Essa mesma abordagem é, então, aplicada à análise do mercado de ações, da qual surgem os modelos de desconto de dividendos para precificação de ativos. Tanto para a indústria quanto para o mercado de ações, a taxa de retorno sobre novos investimentos é tradicionalmente definida de duas maneiras: explicitamente como a taxa interna de retorno constante ao longo do tempo (TIR) que desconta os fluxos de caixa para igualar o custo do investimento que os gerou; ou implicitamente pelo excesso de valor presente sobre os custos de investimento a uma taxa de desconto constante e previamente definida [5]. Ambos os métodos têm problemas bem conhecidos (Mueller, 1990: 9). Além disso, como discutido anteriormente, ambos os métodos dependem da suposição empiricamente implausível de uma taxa de desconto real constante (ou pelo menos variando lentamente) [6].

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Desenvolvimento Econômico Desigual - Erik S. Reinert et al.




RESUMO

Introdução: Desenvolvimento desigual – abordando causas versus tratando sintomas  

Erik S. Reinert e Ingrid Harvold Kvangraven  

PARTE I – FONTES DE DESENVOLVIMENTO DESIGUAL: ORIGEM NATURAL VERSUS POLÍTICAS PÚBLICAS  

1. Desenvolvimento econômico desigual: identificando os pontos cegos da economia mainstream  

Erik S. Reinert  

2. Geografia, desenvolvimento desigual e densidade populacional: tentando uma abordagem não etnocêntrica para o desenvolvimento  

Erik S. Reinert, Salah Chafik e Xuan Zhao  

3. Redirecionando o crescimento: inclusivo, sustentável e orientado à inovação  

Mariana Mazzucato e Carlota Perez  

PARTE II – SUPOSIÇÕES, ABSTRAÇÕES E ABORDAGENS PARA O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL

4. Estados alterados: sonhos cartesianos e ricardianos  

Erik S. Reinert, Monica Di Fiore, Andrea Saltelli e Jerome R. Ravetz  

5. Gênero e desenvolvimento desigual

Lyn Ossome  

6. Teoria da dependência: forças, fraquezas e sua relevância hoje  

Ingrid Harvold Kvangraven  

7. A necessidade de centralizar o imperialismo nos estudos sobre desenvolvimento desigual  

Ingrid Harvold Kvangraven  

8. Imperialismo: uma nota sobre os tratados desiguais da China e do Japão modernos  

Xuan Zhao  

PARTE III – ENTENDENDO OS MECANISMOS QUE CRIAM E PREVINEM A DESIGUALDADE

9. Fisiocracia, guilhotinas e antissemitismo? A economia imitou o Iluminismo errado?  

Andrea Saltelli e Erik S. Reinert  

10. Retrocesso tecnológico e pobreza persistente  

Sylvi B. Endresen  

PARTE IV – QUANDO NAÇÕES E SISTEMAS ENFRAQUECEM E COLAPSAM

11. Quando nações colapsam: uma nota sobre On the Decline of States de Jacob Bielfeld (1760)  

Erik S. Reinert  

12. Livre comércio com os antigos países do COMECON como troca desigual  

Marta Kuc-Czarnecka, Andrea Saltelli, Magdalena Olczyk e Erik S. Reinert  

13. Escapando da armadilha da pobreza na China: a coevolução da diversidade na propriedade e no desenvolvimento econômico  

Ting Xu  

14. Experiências recentes de políticas econômicas bem-sucedidas: o caso do Uzbequistão  

Vladimir Popov  

PARTE V – FINANÇAS VERSUS A ECONOMIA REAL

15. Desenvolvimento desigual, capitalismo financeiro e subordinação  

Bruno Bonizzi, Annina Kaltenbrunner e Jeff Powell  

16. Crescimento desigual e a moeda única: o paradoxo da política fiscal  

Jan Kregel  

PARTE VI – ECOLOGIA

17. Identificando a troca ecológica desigual no sistema mundial: implicações para o desenvolvimento  

Alf Hornborg  

Conclusão: quais são as lições importantes da história? 

Erik S. Reinert e Ingrid Harvold Kvangraven  

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Multiplicador Keynesiano - Gnos e Rochon

GNOS, Claude; ROCHON, Louis-Philippe (eds.). The Keynesian Multiplier. Londres: Routledge, 2003.

INTRODUÇÃO

A análise do multiplicador é um foco central da macroeconomia keynesiana e kaleckiana. É a base sobre a qual grande parte da teoria keynesiana e pós-keynesiana sobre emprego e demanda agregada está fundamentada. É, em particular, o que confere forte validade às políticas fiscais ativas, cujo objetivo é reduzir o desemprego e aumentar o crescimento econômico.

Naturalmente, a tradição do multiplicador pós-keynesiano é herdada de Keynes, cuja Teoria Geral permanece, com todas as suas falhas, um ponto central da macroeconomia pós-keynesiana. Na Teoria Geral, Keynes rompeu com duas regras fundamentais da economia “clássica”: primeiro, a economia “clássica”, como Keynes denominou o que hoje chamaríamos de teoria neoclássica, argumenta que a poupança cria o investimento e que o investimento só pode ser financiado através de poupança ex ante. Em segundo lugar, a poupança e o investimento são equilibrados por variações na taxa de juros: em uma situação de excesso de poupança, uma redução na taxa de juros diminuiria a poupança, mas aumentaria o investimento, equilibrando assim os dois.

Na Teoria Geral e posteriormente, portanto, Keynes abandonou essas noções. Primeiro, situado no tempo histórico, o investimento, financiado pelo crédito bancário, gerava a poupança: o investimento precedia logicamente a poupança. Em outras palavras, o investimento não é financiado pela poupança, e a falta de poupança nunca pode, portanto, restringir o investimento: “O mercado de investimento pode se tornar congestionado pela escassez de dinheiro. Ele nunca pode se tornar congestionado pela escassez de poupança” (1973, p. 222; veja Rochon, 1997, para uma discussão sobre o motivo financeiro de Keynes e o papel específico dos bancos).





segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Fluxos e Estoques de Produção nas Contas Nacionais - Anwar Shaikh

APÊNDICE 4.1 - Fluxos e Estoques de Produção nas Contas Nacionais (Shaikh, 2016)

1. Uma Estrutura para Monitorar Fluxos e Estoques de Produção

1. As contas clássicas concentram-se na produção concluída (XP) (ou seja, bens acabados) [1]. Já as contas convencionais enfocam a produção iniciada (X), que é a soma dos produtos acabados e semiacabados. Essa diferença no conceito de produção total gera outras diferenças nas medidas de insumos intermediários, custos salariais e valor adicionado, embora, no final, ambas as contas resultem na mesma medida de lucro bruto. O mapeamento entre as contas clássicas e as contas padrão será realizado a seguir no nível de uma economia privada fechada com apenas trabalho produtivo, pois é nesse ponto que surgem as diferenças fundamentais. A análise pode ser facilmente estendida para incluir os setores governamental e externo. A incorporação do trabalho não produtivo é tratada detalhadamente em Shaikh e Tonak (1994). Valores numéricos ilustrativos consistentes com a tabela 4.2 do texto deste capítulo são adicionados a todas as variáveis.

[1]: “O processo anual de reprodução é facilmente compreendido, desde que tenhamos em vista apenas o total da produção do ano. Mas cada componente individual desse produto deve ser levado ao mercado como mercadoria” (Marx 1967a, cap. 24, sec. 2, 590). “Os produtos acabados, seja qual for sua forma material ou seu valor de uso, seu efeito útil, são aqui todos capital-mercadoria” (Marx 1967b, cap. 10, 205).

2. É útil começar pelas categorias familiares das contas padrão de renda e produto nacional (NIPA). A produção total é definida como o produto bruto (X), que é a soma dos insumos intermediários adquiridos (A), das vendas de bens finais (XS) e da variação de estoques (ΔINV). A variação de estoques é composta pela soma das variações nos estoques de materiais e suprimentos (ΔINVA), de produtos em processo (ΔINVWIP) e de produtos acabados e bens mantidos para revenda (ΔINVP). Deve-se notar que os produtos acabados incluem materiais, na medida em que representam o produto final dos produtores de materiais, enquanto os bens finais referem-se a produtos acabados que não reentram diretamente na produção (ou seja, bens de consumo e investimento) (BEA 2008, 2–2, 2–9, 2–10) [2]. Para distinguir entre as duas categorias, indicarei os produtos acabados (ou seja, produzidos) com o subscrito “P” e os bens finais com o subscrito “F”. Assim, dentro da medida de produto bruto, a soma dos dois primeiros itens, insumos intermediários adquiridos (vendidos) e vendas de bens finais, representa o total das vendas de produtos acabados. Por fim, o valor adicionado bruto (GVA) e o produto interno bruto (PIB) são definidos como o produto bruto menos os insumos intermediários. Como o produto bruto pode sempre ser expresso pelo lado das fontes como a soma de seus custos com materiais (A), custos salariais (W) e lucro bruto, o GVA é a soma dos custos salariais e do lucro bruto. Pelo lado dos usos, o produto bruto é a soma das vendas (ou compras) de materiais (A) e das vendas finais de bens de consumo (C), bens de investimento fixo (If) e variações de estoques. Portanto, o produto interno bruto (PIB) é a soma do consumo, do investimento fixo e da variação total dos estoques de materiais, produtos em processo e bens finais. Devido ao seu foco na produção iniciada, a medida de “produto final” das NIPA tem a curiosa característica de englobar acréscimos aos estoques de matérias-primas e itens parcialmente fabricados (Shapiro 1966, 26n11).

[2]: Vendas finais são as “vendas da indústria para os usuários finais” e equivalem à soma das despesas de consumo pessoal, do investimento fixo privado bruto, das despesas de consumo do governo e do investimento bruto, e das exportações líquidas de bens e serviços (BEA 2008, 2–10, 12–12).


3. Para realizar a transição para as categorias clássicas, é necessário extrair categorias relevantes para os bens acabados (isto é, produzidos). Observamos no início deste apêndice que as vendas de bens acabados correspondem à soma dos insumos intermediários adquiridos (A) e das vendas de bens finais (FS). Como a produção concluída aumenta os estoques de bens acabados e as vendas de bens acabados reduzem esses estoques, a variação nesses estoques (ΔINVP) é a diferença entre a produção total de bens acabados (XP) e as vendas totais de bens acabados (A + FS). Essa relação pode ser escrita como:



4. As equações (1.1), (1.2) e (1.6) indicam que a medida padrão de produção iniciada é maior do que a medida clássica de produto acabado pela soma das variações nos estoques de materiais e produtos em processo.

5. Uma comparação semelhante pode ser feita entre os custos de materiais e trabalho da produção total (A + W) e os custos correspondentes do produto acabado. O custo de materiais dos bens acabados (AP) é o custo de materiais dos bens acabados cuja produção foi iniciada no ano corrente (A'P) mais o custo de insumos dos bens acabados cuja produção foi iniciada em anos anteriores (A''P) [3]. Da mesma forma, o custo de trabalho dos bens acabados (WP) é o custo de trabalho dos bens acabados iniciados no ano corrente (W'P) mais o custo de trabalho dos bens acabados iniciados em anos anteriores (W''P). Também é útil observar que a folha salarial total do ano corrente (W) é a soma dos salários gastos na produção iniciada no ano, tanto a concluída (W'P) quanto a não concluída (WWIP).

[3]: Se os preços estiverem variando, os custos atuais dos insumos não serão os mesmos que os custos efetivamente pagos, o que geralmente é tratado por meio de ajustes de valoração de estoques (BEA 2008, 2-8n19).


6. As variações nos estoques de materiais e produtos em processo fornecem os elos que faltam entre as medidas convencional e clássica de custo total. A variação nos estoques de materiais (ΔINVA) é a diferença entre as compras de materiais (A), que aumentam esses estoques, e seu uso na produção iniciada e concluída dentro do ano (A'P) e na produção em processo (AWIP). A variação nos estoques de produtos em processo (ΔINVWIP) decorre da adição de novos produtos em processo, avaliados a custo (AWIP + WWIP), e da subtração dos custos dos bens atuais iniciados em anos anteriores (AWIP + WWIP), que saem desses estoques ao serem concluídos.

7. Agora estamos em posição de demonstrar que as duas medidas de custos de produção diferem exatamente pelo mesmo valor que as medidas correspondentes de produto total [4]. Segue-se imediatamente que a medida de lucro bruto é a mesma em ambos os casos: a medida padrão do excedente operacional bruto (GOS) é igual à medida clássica da forma monetária do excedente bruto de valor (GSV). Portanto, o termo lucro bruto (PG) é usado para ambas.

[4]: A combinação das equações (1.8)–(1.12) resulta em:




8. A medida clássica do excedente bruto também possui um equivalente pelo lado do uso, que é o produto do excedente bruto (GSP). Este é a diferença entre o produto total acabado (XP) e os equivalentes de uso de seus custos (AP + WP). A partir das equações (1.1) e (1.6), a forma de uso do produto total acabado é XP = A + C + If + ΔINVP; AP já está na forma de uso; e, assumindo que o consumo dos trabalhadores é igual aos seus salários, os salários dos trabalhadores utilizados para criar o produto total podem ser escritos como WP = W – (W–WP) = CW – (W–WP), onde CW é o consumo corrente dos trabalhadores. Assim, com uma pequena reorganização dos termos, obtemos:


9. O primeiro termo entre parênteses no lado direito é o consumo dos capitalistas, que é a diferença entre o consumo total e o consumo dos trabalhadores. O segundo termo é a diferença entre os insumos adquiridos no ano corrente e aqueles utilizados na produção do produto final, representando o investimento total em materiais. O terceiro termo é a diferença entre as aquisições atuais de força de trabalho e aquelas realizadas na produção de bens acabados, representando o investimento total em força de trabalho. A soma do investimento em materiais e em força de trabalho constitui o investimento total em capital circulante (Ic) [5]. Como a produção leva tempo, o aumento da produção só pode ser alcançado primeiro pelo aumento dos insumos via investimento circulante. O investimento fixo (If), por outro lado, expande a capacidade. A distinção entre os dois é essencial para a dinâmica clássica (capítulos 12–13). Assim, o produto do excedente bruto é a soma do consumo dos capitalistas (CC), do investimento em capital circulante, do investimento em capital fixo e das variações nos estoques de bens finais. Isso é exatamente o que aparece nos esquemas de reprodução de Marx [6].

[5]: Marx afirma que o capital circulante é composto pelos salários e pelos materiais brutos e auxiliares consumidos na produção de uma mercadoria. O investimento em capital circulante é o aumento desse montante (Marx, 1967b, cap. 12, 231, 236).

[6]: Nos esquemas de reprodução de Marx, no caso apenas de capital circulante, em sua notação, a forma de uso do valor excedente total é S = Sc + Sac + Sav, onde S = valor excedente líquido, Sc = consumo dos capitalistas, Sac = ΔC = investimento em capital circulante, e Sav = ΔV = investimento em capital variável (Sweezy 1942, 162–163). A reprodução simples ocorre quando não há crescimento, de modo que ΔC = ΔV, caso em que todo o valor excedente é destinado ao consumo dos capitalistas (S = Sc).


10. Agora podemos comparar as medidas padrão e clássica de valor adicionado bruto [7]. Como ambas incorporam a mesma medida de lucro bruto (GOS = GSV = PG), a diferença só pode surgir das diferenças na medida de salários. E, como observamos anteriormente, essa diferença (W – WP) é simplesmente o investimento em força de trabalho. Esse é exatamente o ponto levantado por Tsuru (1942, 371–373) [8], embora sua derivação se refira ao caso especial de capital puramente circulante com um período de produção uniforme (veja capítulo 4, nota 15).

[7]: Uma notação ligeiramente diferente para o valor adicionado bruto clássico foi usada em Shaikh e Tonak (1994, cap. 3).

[8]: Tsuru também argumenta que a variação na folha salarial aparece duas vezes na medida convencional de produto interno bruto. Isso é melhor entendido agrupando sua medida em três itens: VA-NIPA = (Sc) + (V + Sav) + (Sac + Sav). O primeiro item é o consumo dos capitalistas. O segundo é o consumo dos trabalhadores: como toda produção leva um ano, o custo do trabalho de bens acabados (V) é a folha salarial do ano anterior, V + Sav = V + ΔV = a folha salarial do ano atual, e esta última é igual ao consumo atual dos trabalhadores, dada a suposição de Tsuru e Marx de que toda renda salarial é consumida no mesmo período. O terceiro item é o investimento total em capital circulante, ou seja, o acréscimo líquido aos estoques de produtos em processo, medido pelo custo dos materiais adicionais (Sac = ΔC) e do trabalho adicional (Sav = ΔV). Assim, VA-NIPA = Consumo Total + Investimento Total. De fato, um aumento na folha salarial aparece tanto no consumo atual dos trabalhadores quanto como parte do acréscimo atual aos estoques de produtos em processo.


11. Por fim, pode-se demonstrar que é possível identificar explicitamente o investimento em capital circulante mesmo dentro das medidas de produto bruto e produto interno bruto (PIB) das NIPA. O produto bruto é a soma das compras de materiais (A) e do produto interno bruto, sendo este último a soma do consumo (C), dos bens de investimento fixo (If) e das variações de estoques (ΔINV). Este último item corresponde à variação nos estoques de bens finais (ΔINVP) mais a soma da variação nos estoques de materiais e suprimentos e produtos em processo (ΔINVA + ΔINVWIP). Contudo, pela equação (1.13), essa última soma é simplesmente o investimento em capital circulante.


12. Segue-se que, a partir das equações (1.2), (1.5) e (1.20), podemos expressar o produto interno bruto (PIB) das NIPA como:


13. O investimento em capital circulante está presente o tempo todo, escondido à vista de todos.


Siglas:

A = insumos intermediários adquiridos (custos materiais)

AP = custo de materiais dos bens acabados (AP = A'P + A''P)

(A’P) = custo de materiais dos bens acabados cuja produção foi iniciada no ano corrente 

(A’’P) = custo de insumos dos bens acabados cuja produção foi iniciada em anos anteriores 

(AWIP) = custo de materiais na produção em processo

C = bens de consumo

CC = consumo dos capitalistas

F = bens finais;

FS = vendas finais

GVA = valor adicionado bruto (convencional)

GVAP = Valor Adicionado Bruto Clássico

GOS = medida padrão do excedente operacional bruto

GSP = produto excedente bruto

GSV = medida clássica da forma monetária do excedente bruto de valor

If = bens de investimento fixo

Ic = investimento em capital circulante

NIPA = contas padrão de renda e produto nacional

P = produtos acabados (ou seja, produzidos)

PG = lucro bruto

PIB = produto interno bruto

W = custos salariais

WP = custo de trabalho dos bens acabados (WP = W'P + W''P)

(W’P) = custo salarial dos bens acabados iniciados no ano corrente

(W’’P) = custo salarial dos bens acabados iniciados em anos anteriores

(WWIP) = salários gastos na produção iniciada no ano e não concluída 

X = produto bruto (produção iniciada = produtos acabados + semiacabados)

XP = produção total de bens acabados (produção concluída)

XS = vendas de bens finais

(ΔINV) = variação de estoques

(ΔINVA) = variações nos estoques de materiais e suprimentos

(ΔINVWIP) = variações nos estoques de produtos em processo 

(ΔINVP) = variações nos estoques de produtos acabados e bens mantidos para revenda

Desigualdade e Movimento da Taxa de Câmbio em Macroeconomia Aberta - Carnevali et al.

CARNEVALI, Emilio; RUGGERI, Francesco; VERONESE PASSARELLA, Marco. Inequality and Exchange Rate Movements in an Open-Economy Macroeconomic Model. Review of Political Economy, v. 36, n. 2, p. 722–760, 2024. DOI: 10.1080/09538259.2022.2062961.

SUMÁRIO

1. Introdução  

2. O Contexto: Financeirização  

    2.1. Mudanças na Distribuição de Renda  

    2.2. Financeirização das Empresas  

    2.3. Liberalização Financeira e Consumo Financiado por Dívidas  

    2.4. Liberalização da Taxa de Câmbio e da Conta de Capital  

    2.5. Desenvolvimento Financeiro  

    2.6. Regimes de Crescimento Baseados em Dívidas vs Baseados em Exportações  

3. Revisão da Literatura  

4. O Modelo  

    4.1. O Setor Doméstico  

    4.2. Consumo e Renda Total  

    4.3. O Setor Financeiro  

    4.4. O Mecanismo da Taxa de Câmbio  

5. Apresentação dos Resultados  

    5.1. Crescimento Baseado em Dívidas Privadas e Desigualdade  

    5.2. Consequências Econômicas da (Crescente) Desigualdade  

6. Evidências dos Estados Unidos  

7. Conclusão

RESUMO

Este artigo apresenta um modelo macroeconômico completo (SFC) para estudar a distribuição de renda e riqueza em uma economia aberta. Argumentamos que as taxas de câmbio e o estoque de dívida externa desempenham um papel crucial na determinação da desigualdade entre e dentro dos países. Usando a "hipótese da renda relativa", mostramos que o consumo financiado por dívida de famílias de baixa renda pode afetar tanto a renda total quanto a renda disponível de famílias de alta renda no médio prazo. Além disso, embora uma maior desigualdade seja prejudicial à economia doméstica, ela pode beneficiar os parceiros comerciais.

INTRODUÇÃO

A relação entre finanças e desigualdade tem atraído crescente atenção desde o início da crise financeira dos Estados Unidos em 2007–08. O tema tem sido frequentemente enquadrado no conceito mais amplo de "financeirização".  

A maioria dos estudos foca em países ou regiões isolados. Como resultado, o papel dos fluxos de capital entre países e das taxas de câmbio é geralmente negligenciado. Apresentamos um modelo de economia aberta, denominado IEROE (Inequality and Exchange Rate in the Open Economy), que busca preencher essa lacuna na pesquisa. Sua estrutura básica é derivada do modelo OPENFLEX, desenvolvido por Godley e Lavoie (2007). O modelo de referência foi ampliado com três blocos de equações. As novas características são as seguintes: (1) o setor doméstico de famílias é dividido em dois grupos, com base na renda mediana; (2) as famílias de baixa renda tentam emular os padrões de consumo das famílias de alta renda (hipótese da renda relativa, RIH); e (3) o crédito ao consumo das famílias de baixa renda é financiado por empréstimos bancários.  

O artigo está organizado da seguinte forma. A Seção Dois apresenta o conceito de "financeirização" e fornece evidências de como ele tem sido usado para resumir uma série coerente de "mudanças estruturais socioeconômicas". A Seção Três apresenta uma revisão da literatura sobre as contribuições mais recentes em finanças e desigualdade. A estrutura do modelo é discutida em detalhe na Seção Quatro. Na Seção Cinco, utilizamos o modelo para testar o impacto do comportamento emulativo e de uma mudança na distribuição primária de renda, respectivamente. Mostramos (experimento 1) que o comportamento emulativo das famílias de baixa renda (financiado por empréstimos bancários) tem um impacto negativo no médio prazo sobre a renda total doméstica. Além disso, afeta a renda e a riqueza financeira líquida da classe alta. Uma distribuição mais desigual de renda (experimento 2) é prejudicial para o país como um todo. Contudo, pode beneficiar tanto as famílias domésticas de alta renda quanto os parceiros comerciais. Na Seção Seis, mostramos que os resultados do modelo replicam as séries temporais disponíveis para a economia dos EUA durante a crise de 2007–08. De forma mais geral, nossos experimentos elucidam as principais relações causais entre o aumento da desigualdade de renda e riqueza e a instabilidade financeira em uma economia aberta. Isso também pode ser muito útil na economia da pandemia de Covid-19, já que evidências indicam que o recente choque econômico contribuiu para um aumento adicional no nível de desigualdade entre países (Bottan, Hoffmann e Vera-Cossio, 2020; Nassif-Pires et al., 2020; Qureshi, 2020; Perry, Aronson e Pescosolido, 2021). Planos de recuperação pós-pandemia devem levar essa lição em conta se desejam contribuir para uma economia mais estável e resiliente. Observações finais são apresentadas na Seção Sete.  

2. O Contexto: Financeirização

O termo "financeirização" é frequentemente usado para marcar o período desde o final da década de 1970 até o surgimento da crise de 2007–08. Muitos autores têm empregado o termo para explorar diversos aspectos das economias avançadas desde então, mas, como observa Krippner (2005, p. 181), "a literatura sobre financeirização é, no momento, um campo um tanto livre, carecendo de uma visão coesa sobre o que deve ser explicado". De fato, mais de 15 anos depois, ainda falta uma interpretação única desse conceito na literatura econômica.  

De acordo com Epstein (2019, p. 380), a financeirização "refere-se à crescente importância dos mercados financeiros, dos motivos financeiros, das instituições financeiras e das elites financeiras no funcionamento da economia e de suas instituições governantes, tanto no nível nacional quanto internacional". Essa definição é suficientemente geral para incluir uma variedade de mudanças estruturais que ocorreram na maioria das economias avançadas. Nas próximas subseções, discutimos brevemente algumas das mudanças mais relevantes.  

2.1. Mudanças na Distribuição de Renda

Durante a era da financeirização, a distribuição de renda favoreceu o capital em detrimento do trabalho (ver Hein e Dodig, 2015, para uma análise de longo prazo desse fenômeno). A Figura 1 mostra a evolução da distribuição funcional da renda em economias selecionadas. A Figura 2 foca na participação da renda do 1% mais rico.  

Todos os países registraram uma redução na participação salarial desde o final da década de 1970. A maior parte dessa "redistribuição" ocorreu durante os anos 1980. Ao mesmo tempo, os rendimentos do 1% mais rico registraram um crescimento substancial. Essa redistribuição de renda de baixo para cima começou no início dos anos 1980 nos EUA e no Reino Unido, onde Ronald Reagan e Margaret Thatcher lideraram a "revolução conservadora" no mundo ocidental. Na Espanha, Alemanha, Suécia e França, esse processo de redistribuição começou apenas em meados da década de 1990 ou até mesmo no início dos anos 2000 (Hein, 2015).  

Figura 1 - Participação do trabalho na renda nacional (%). Países selecionados da OCDE.

Nota: Nossa elaboração com base nos dados da *World Inequality Database*, 2021.  


Figura 2 - Renda nacional antes de impostos, participação do 1% mais rico. Países selecionados da OCDE.

Nota: Nossa elaboração com base nos dados da World Inequality Database, 2021.  


A distribuição mais desigual da renda entre salários e lucros (incluindo dividendos, pagamentos de juros e lucros retidos) foi acompanhada por uma distribuição mais desigual da renda pessoal entre os assalariados (isto é, entre trabalhadores de baixa renda e altos executivos, estrelas do esporte e do entretenimento, e empregados do setor financeiro). A queda no poder de barganha dos sindicatos e a mudança na estrutura da economia contribuíram para a estagnação dos salários reais nas indústrias manufatureiras tradicionais.

2.2. Financeirização das Empresas

As empresas não financeiras aumentaram seus investimentos em portfólios nos mercados de ações e abriram novas subsidiárias financeiras em vez de adquirir novas máquinas e instalações produtivas (Dodig e Hein, 2015). A parcela de receitas financeiras das empresas tem crescido desde o início da década de 1980. A Figura 3 mostra o nível de ativos financeiros como porcentagem dos ativos tangíveis para corporações não financeiras nos EUA. O nível de ativos financeiros mantidos por essas corporações aumentou constantemente em comparação aos ativos tangíveis. A Figura 4 apresenta o nível de "renda financeira" recebida por corporações não financeiras como porcentagem dos recursos internos mantidos pelas empresas. Essas figuras resumem bem a mudança em direção à "gestão financeira" adotada pelas empresas não financeiras desde o final da década de 1970.  

Figura 3 - Ativos financeiros como porcentagem do total de ativos, corporações não financeiras. Estados Unidos.  

Nota: Elaboração própria com base em dados do FRED, 2021.  


2.3. Liberalização Financeira e Consumo Financiado por Dívidas

A crescente disponibilidade de crédito ao consumidor durante a era da financeirização criou condições para o consumo financiado por dívidas. Ao mesmo tempo, o aumento da desigualdade de renda estimulou o consumo por efeito de "gotejamento". De fato, a concentração de renda e riqueza incentivou consumidores de baixa renda a imitar os padrões de consumo dos mais ricos. Essa hipótese da renda relativa (*Relative Income Hypothesis*, RIH) remonta ao trabalho seminal de Duesenberry (1949), que, por sua vez, ecoa a abordagem institucionalista de Veblen (1899). A RIH destaca a importância da formação de hábitos e do comportamento emulativo nos padrões de consumo de diferentes grupos sociais ("manter-se à altura dos vizinhos"). Baseando-se em Duesenberry (1949), Frank, Levine e Dijk (2014) propuseram a chamada hipótese das cascatas de gastos (*expenditure cascades*). Essa hipótese busca explicar a queda na taxa de poupança observada nos EUA durante o período de financeirização por meio de um mecanismo de cascata: gastos mais altos das famílias no quintil (ou decil) superior de renda levam os quintis subsequentes a aumentarem seus gastos. Essa imitação, por sua vez, eleva o consumo das famílias no terceiro quintil mais alto, e assim por diante.  

Figura 4 - Razão entre dividendos e lucros não distribuídos (%), corporações não financeiras. Estados Unidos.  

Nota: Elaboração própria com base em dados do *US Bureau of Economic Analysis* (BEA), 2021.  

Em alguns casos, o boom de consumo financiado por dívidas privadas compensou o impacto contracionista da redistribuição de renda em favor da parcela mais rica da população, bem como o efeito depressivo da queda no investimento líquido das empresas de produção.  

Além disso, novas normas financeiras, instrumentos financeiros e práticas financeiras reduziram os padrões de avaliação de crédito. Essas mudanças — geralmente chamadas de "liberalização financeira" — também incentivaram o aumento do crédito ao setor doméstico. Esse aspecto específico da financeirização é analisado no primeiro experimento da Seção Quatro.  

**2.5. Desenvolvimento Financeiro**  


A distinção entre liberalização financeira e desenvolvimento financeiro foi proposta pela primeira vez por Abiad, Oomes e Ueda (2008). O último inclui tanto a ampliação dos serviços financeiros para novos usuários (margem extensiva) quanto a melhoria da qualidade dos serviços financeiros para usuários antigos (margem intensiva). O desenvolvimento financeiro é frequentemente medido pela relação entre o crédito total (para o setor privado) e o PIB. A Figura 5 mostra o aumento dramático do desenvolvimento financeiro em nível internacional durante a era da financeirização, com períodos de aceleração abrupta em alguns países (no Reino Unido em meados da década de 1980 e na Suécia no final da década de 1990).  


**2.6. Regimes de Crescimento Baseados em Dívidas vs Baseados em Exportações**  


A combinação dos pontos apresentados nas Seções 2.3 (consumo financiado por dívidas) e 2.4 (liberalização da conta de capital) gerou um padrão típico de crescimento frequentemente descrito como regime de boom de demanda privada baseado em dívidas. Em particular, os EUA têm dependido cada vez mais do consumo para sustentar a demanda doméstica. No entanto, isso gerou uma maior demanda por bens estrangeiros, fomentando regimes de crescimento complementares baseados em exportações (como os da Alemanha, Japão e Suécia). Por sua vez, os superávits externos das economias baseadas em exportações foram investidos na dívida dos Estados Unidos e de outros países deficitários, graças à liberalização da conta de capital.  

Figura 5 - Crédito doméstico ao setor privado (% do PIB). Países selecionados da OCDE.  

Nota: Elaboração própria com base em dados do Banco Mundial, 2021.  

Um regime baseado em exportações também pode se originar de dinâmicas fracas de alguns componentes autônomos da demanda agregada, como os gastos governamentais, em vez de ser impulsionado pelo aumento da desigualdade ou do poder crescente das finanças. Ainda assim, os desequilíbrios gerados por esses padrões de crescimento desiguais só podem ser sustentados na presença de algum grau de liberalização financeira e desenvolvimento financeiro, como a história recente da Zona do Euro tem demonstrado.  

No entanto, a relação entre esses diferentes regimes de crescimento é mais complexa do que geralmente se reconhece. Na Seção Quatro, mostramos que, por mais contraintuitivo que possa parecer, o fim de um regime de crescimento baseado em dívidas em um país não tem o mesmo efeito negativo (de longo prazo) sobre seus parceiros comerciais.