quarta-feira, 14 de maio de 2025

Um índice composto do poder de barganha dos trabalhadores e da taxa de inflação nos Estados Unidos, 1960–2018 - Fontanari, Levrero e Romaniello

FONTANARI, Claudia; LEVRERO, Enrico Sergio; ROMANIELLO, Davide. A composite index for workers’ bargaining power and the inflation rate in the United States, 1960–2018. Structural Change and Economic Dynamics, v. 70, p. 682-698, 2024.

Sumário

1. Introdução

2. O poder de barganha dos trabalhadores e a curva de Phillips ampliada pelo conflito

3. Um índice sintético do poder de barganha dos trabalhadores: a metodologia

3.1. A análise de componentes principais

3.2. Dados e construção do índice composto

4. A relevância da “condição pró-trabalhadores” na inflação de preços: uma estimativa empírica

5. Conclusão

Apêndice 1

Apêndice 2

Apêndice 3


Resumo

Este artigo tem como objetivo construir um índice sintético do poder de barganha dos trabalhadores e investigar a relação entre esse poder e a inflação na economia dos Estados Unidos. Como primeiro passo, identificamos os fatores que afetam o poder de barganha dos trabalhadores, com base em diferentes grupos de variáveis: indicadores do mercado de trabalho; indicadores institucionais (por exemplo, cobertura da negociação coletiva, densidade sindical); e características da economia (por exemplo, grau de liberdade para mobilidade de capital, participação setorial no emprego). Em seguida, aplicamos a Análise de Componentes Principais (PCA) para avaliar a adequação dos indicadores e calcular os pesos para agregá-los em um índice composto. Como segundo passo, estimamos o impacto do nosso Índice de Barganha sobre a inflação, por meio da estimação de uma equação dos determinantes da inflação. O índice composto, portanto, tem uma dupla função: iluminar em que medida as mudanças no mercado de trabalho nas últimas décadas enfraqueceram o poder de barganha dos trabalhadores e permitir testar como a evolução do sistema de negociação salarial afeta a inflação.

1. Introdução

Após a Grande Recessão e antes do recente aumento nos preços, o conceito de histerese (Blanchard e Summers, 1986) foi redescoberto e utilizado para explicar a persistência de um alto nível de desemprego associado a uma taxa de inflação estável (Blanchard et al., 2015). No entanto, isso não levou a uma reformulação teórica do funcionamento do mercado de trabalho (Summa e Braga, 2020), mas consistiu em uma série de exceções introduzidas no arcabouço neoclássico tradicional para explicar o fenômeno da ausência de deflação quando há um aumento na taxa de desemprego. Por um lado, os efeitos de longo prazo da demanda agregada foram limitados ao crescimento da produtividade, às taxas de participação populacional e à qualificação e experiência dos trabalhadores, desconsiderando o ajuste da capacidade produtiva às mudanças na demanda agregada, conforme a tendência das empresas de buscar um grau normal de utilização da capacidade. Por outro lado, a inflação continuou sendo vista principalmente como decorrente de excessos de demanda no mercado de trabalho, e sua menor sensibilidade ao desemprego na última década foi explicada por diversas fontes de imperfeições, como o modelo de barganha salarial entre insiders e outsiders ou o aumento do desemprego de longo prazo (Paternesi Meloni et al., 2022; Romaniello, 2023).

Uma visão diferente sobre o funcionamento do mercado de trabalho é apresentada, no entanto, por uma teoria do conflito da inflação combinada com uma perspectiva de crescimento liderado pela demanda (Braga e Serrano, 2023). Nessa teoria, períodos de elevado desemprego involuntário podem constituir uma situação normal, e a raiz da inflação é atribuída principalmente aos conflitos nas reivindicações sobre a distribuição de renda entre as partes envolvidas na negociação salarial. Portanto, pode existir uma curva de Phillips de longo prazo não vertical. Além disso, diferentes taxas de inflação podem corresponder a uma mesma taxa de desemprego, dependendo dos fatores sociais e políticos que afetam o poder de barganha das “partes em competição”. Isso implica que o fenômeno da ausência de deflação ou inflação nas últimas décadas pode ser explicado sem recorrer a exceções ou imperfeições no mercado de trabalho, como faz o modelo tradicional. Implica também que a recente queda nos salários reais após o agravamento dos termos de troca em vários países avançados pode ser facilmente interpretada em termos do enfraquecimento da força dos trabalhadores nas negociações salariais.

O objetivo deste artigo é construir um índice sintético do poder de barganha dos trabalhadores, a partir da experiência dos Estados Unidos, e utilizá-lo para esclarecer como as mudanças ocorridas no mercado de trabalho norte-americano nas últimas décadas afetaram a posição de barganha dos trabalhadores. Como primeiro passo, esclareceremos (na Seção 2) os principais elementos da literatura sobre inflação de conflito e os determinantes do poder de barganha dos trabalhadores, identificando-os nos Estados Unidos ao longo das últimas décadas. Especificamente, faremos referência a diferentes grupos de variáveis: indicadores do mercado de trabalho; indicadores institucionais (por exemplo, cobertura da negociação coletiva, densidade sindical); e características da economia (por exemplo, grau de liberdade para mobilidade de capital, participação do emprego por setor). Após uma breve exposição da metodologia adotada para construir o índice sintético, passaremos, na Seção 3, à agregação dos indicadores individuais em componentes sintéticos por meio da Análise de Componentes Principais (PCA). Nesse sentido, também compararemos diferentes índices sintéticos possíveis. Em seguida, avançaremos para a segunda etapa de nossa análise, em que estimamos (na Seção 4) o impacto do nosso Índice de Barganha sobre a inflação, por meio da estimação de uma equação dos determinantes da inflação. O índice composto, portanto, tem uma dupla função: lançar luz sobre a medida em que as mudanças no mercado de trabalho nas últimas décadas enfraqueceram o poder de barganha dos trabalhadores e ser utilizado para testar como a evolução do sistema de negociação salarial afeta a inflação. Nesse sentido, nosso exercício representa um teste específico da curva de Phillips, no qual a taxa de desemprego é considerada juntamente com outros fatores que se espera influenciem a taxa de inflação. Como incluímos alterações nos termos de troca entre esses fatores, o exercício pode também esclarecer fenômenos recentes que afetam o mercado de trabalho.

2. O poder de barganha dos trabalhadores e a curva de Phillips ampliada pelo conflito

O poder de barganha dos trabalhadores é um conceito multidimensional e complexo. De modo geral, a força relativa das partes envolvidas na negociação salarial é afetada tanto por circunstâncias sociais e econômicas passadas quanto atuais (ver Levrero, 2012 e 2013; Stirati, 1994). A situação passada se consolida em normas sociais, hábitos dos trabalhadores, salários mínimos e regras de negociação geralmente aceitas, que influenciam o piso representado pelo salário de subsistência a partir do qual a negociação salarial se inicia e abaixo do qual, em condições normais, os salários reais não cairão — ou cairão apenas temporariamente.

As circunstâncias atuais são aquelas listadas, por exemplo, por Smith (1976) e Marx (1961-63) ao postular, para uma dada técnica, uma relação positiva entre o ritmo de acumulação de capital e a taxa de salário, ou ao discutir os efeitos das mudanças técnicas sobre essa taxa. Assim, segundo Smith, a taxa de salário se elevará acima do nível de subsistência quando o desemprego e o subemprego diminuírem devido à acumulação de capital (isto é, ao aumento da demanda média por trabalho) superar o crescimento da população em idade ativa (isto é, o aumento da oferta de trabalho).

Como em Smith e Marx, nesse segundo conjunto de circunstâncias, também podemos incluir fatores sociais e institucionais, como a situação social e política de um país ou o grau de organização dos trabalhadores, que são em parte independentes da quantidade e da taxa de desemprego, e portanto representam elementos verdadeiramente autônomos na determinação da posição de barganha dos trabalhadores. Por exemplo, o atual grau de organização dos trabalhadores será influenciado, além do desemprego, por mudanças na legislação trabalhista, pelo grau de consciência de classe, pela maior ou menor coesão entre os diferentes grupos de trabalhadores, pelo grau de concentração da força de trabalho e por sua maior ou menor substituibilidade no processo produtivo (Levrero, 2013).

Por fim, em economias abertas, a ameaça de deslocalização da produção, o impacto do aumento da concorrência internacional sobre o emprego e as restrições impostas à adoção de políticas macroeconômicas expansionistas devido à livre movimentação de capitais são todos fenômenos que podem afetar, direta ou indiretamente, a força dos trabalhadores na negociação salarial (ver Epstein e Burke, 2001; Pivetti, 2013; Rodrik, 1997; Wood, 1994).

Uma referência a essa força é comum na teoria econômica tanto ao se considerar a determinação da distribuição de renda quanto ao se explicar o comportamento dos salários monetários e dos preços. No que diz respeito à distribuição de renda, na abordagem clássica de Smith, Ricardo e Marx, por meio do processo de barganha, os salários em termos reais eventualmente terão de refletir a força relativa dos trabalhadores na negociação salarial. Assim, Buchanan (1966, p. 53) escreveu, em resposta a Malthus, que “o trabalhador (...) quando percebesse que o aumento de seus salários não trouxe nenhuma melhora real em sua condição, exigiria um segundo aumento com base no mesmo princípio que lhe permitiu obter o primeiro; e assim o preço monetário do trabalho continuaria subindo até ser interrompido por um aumento real dos salários” [1]. Trata-se de um efeito do processo de barganha salarial sobre os salários reais, o qual também é reconhecido ao se desenvolver a ideia avançada por Sraffa (1960, §44) de que a margem real sobre os preços pode ser afetada pela taxa de juros monetária, argumentando que essa margem dependerá da relação entre a taxa nominal de juros de longo prazo sobre ativos sem risco, fixada em média pelas autoridades monetárias (acrescida da margem de lucro empresarial), e a taxa de variação dos custos nominais unitários do trabalho [2].

[1]: Abstraímos aqui de qualquer consideração sobre o efeito da barganha salarial em uma economia de moeda mercadoria ou fiduciária, referindo-nos apenas à sugestão de Buchanan.

[2]: Como escreveu Garegnani (1979, p. 81), “a política das autoridades monetárias não é conduzida no vazio, e o movimento dos preços e dos salários monetários determinados na barganha salarial estarão entre as considerações mais importantes na formulação dessa política”. Ver também Pivetti (1991). Isso é especialmente verdadeiro quando se leva em conta um aumento contínuo dos salários monetários e seu efeito sobre a taxa de juros real.

No entanto, uma referência à força de barganha dos trabalhadores também pode ser encontrada em outras correntes de pensamento, especialmente ao se explicar a evolução efetiva da distribuição de renda. Processos de automação e de produção just-in-time, com os fenômenos associados de redução do tamanho das empresas e terceirização, assim como os bens de capital em tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o consequente aumento nas taxas de obsolescência do capital, são apontados como fatores que enfraqueceram a posição de barganha dos trabalhadores e reduziram a participação dos salários na renda (ver, por exemplo, Bental e Demougin, 2010; e Hornstein et al., 2007). Além disso, em uma perspectiva fortemente clássica-marxista, argumenta-se que o capital “selecionou e desenvolveu tecnologias que eram muito menos intensivas em trabalho”, como uma reação à pressão salarial dos anos 1960 e às leis de proteção ao trabalho da década de 1970 (ver Caballero e Hammour, 1997, p. 4). Por fim, e talvez mais significativamente, em diversos modelos — especialmente os da chamada escola Novo-Keynesiana, fundada em uma combinação dos princípios de substituibilidade dos fatores e otimização, por um lado, e de “fricções” operando nos mercados de trabalho e de bens, por outro — os "deslocamentos" na relação entre os preços relativos dos fatores de produção e a razão capital-trabalho são atribuídos, com base empírica, não a fatores tecnológicos, mas a um aumento nas margens de lucro sobre os custos primários de produção causado por uma elevação das taxas de juros monetárias no final dos anos 1970 (ver, por exemplo, Bagli, Cette e Sylvain, 2003; Landmann e Jerger, 1993), ou ainda a uma redução no poder de barganha dos sindicatos. As mudanças nas leis de demissão e nas regras de negociação coletiva, desfavoráveis aos trabalhadores, e o declínio do poder sindical são, de fato, considerados fatores que, junto com o aumento do poder de monopsônio no mercado de trabalho (OCDE, 2020), influenciaram a tendência da participação dos salários na renda — reduzindo o montante das “rendas de monopólio” que os trabalhadores supostamente conseguiam “apropriar” (ver Bentolilla e St. Paul, 2003; Blanchard, 1997, p. 103; Giammarioli et al., 2002) [3].

[3]: Naturalmente, esses fatores que afetam as “rendas de monopólio” são introduzidos nesses modelos para explicar as mudanças na distribuição de renda juntamente com aquelas na taxa média de desemprego, com base no pressuposto de que a taxa de desemprego “de equilíbrio” e os salários reais variam na mesma direção, devido ao princípio da substituibilidade dos fatores. Nesse aspecto em particular, esses modelos deixam de dar conta dos fatos empíricos, pois a queda na participação dos salários na renda, explicada nos modelos pela “desregulamentação do mercado de trabalho” e pela menor força dos sindicatos, ocorreu precisamente quando houve um aumento — e não uma queda — na taxa média de desemprego. Ainda assim, é significativo que esses fatores sejam considerados cruciais nesses modelos para explicar a mudança na distribuição nas últimas três décadas, assim como são para uma interpretação em termos clássicos-marxistas. A diferença está no fato de que, na teoria clássica, fatores como mudanças institucionais não são vistos como afetando apenas “rendas de monopólio”, já que não são considerados “perturbações” às forças subjacentes de oferta e demanda. Mais importante, a teoria clássica consegue facilmente explicar o aumento do desemprego e a queda dos salários (relativamente à produtividade), porque a taxa de desemprego e a taxa de salário não são vistas como relacionadas de forma direta e funcional. Pelo contrário, o desemprego é visto como determinado pelo progresso técnico e pelo ritmo da demanda efetiva, que por sua vez pode ser negativamente influenciado por uma queda nos salários reais. Além disso, a inovação tecnológica e a globalização — os fatores usualmente citados como as principais causas das mudanças na distribuição funcional da renda por publicações oficiais do Fundo Monetário Internacional (ver FMI, 2007) e da Comissão Europeia (ver CE, 2007) — não são vinculados mecanicamente aos salários na teoria clássica. Eles são vistos como influenciando os salários na medida em que afetam a força do trabalho na barganha salarial, por meio de seus efeitos sobre o nível de desemprego, a coesão e o grau de organização dos trabalhadores.










3. Um índice sintético do poder de barganha dos trabalhadores: a metodologia

A construção de um indicador composto consiste em diversas etapas, sendo que qualquer uma delas pode ser abordada com diferentes metodologias. Os passos básicos usuais no procedimento (OECD, 2008) são: (1) definir o fenômeno a ser medido (quadro teórico); (2) selecionar um grupo de indicadores individuais; (3) normalizar os indicadores individuais; (4) agregar os indicadores normalizados; e (5) validar o indicador composto.

Para construir nosso indicador sintético do poder de barganha dos trabalhadores, nosso fenômeno latente, nos referimos ao chamado modelo formativo, onde os indicadores individuais usados para definir um fenômeno são causas da variável latente, e não seu efeito [17]. Isso significa que, se o fenômeno mudar, o indicador individual não mudará (OECD, 2008). Para combinar os indicadores individuais, implementamos a Análise de Componentes Principais (PCA), que nos permite reduzir o número de variáveis (ou seja, agregá-las em componentes) e preservar a máxima proporção da variação total. Após padronizar os indicadores, usamos a PCA para avaliar a adequação dos indicadores [18] e, em seguida, calcular os pesos que permitem que os diferentes componentes sejam agregados em um único indicador composto. Por fim, o índice agregado obtido é validado para avaliar se ele pode descrever o objeto da análise.

[17]: No caso do poder de barganha dos trabalhadores, consideramos que um modelo formativo, ao invés de um modelo reflexivo, é mais adequado, dado o caráter multidimensional do poder de barganha dos trabalhadores e a suposição tautológica de que salários reais mais altos significam maior força dos trabalhadores.

[18]: Como uma extensão deste trabalho, também vamos usar uma abordagem de ponderação subjetiva ou de especialista.

3.1. A análise de componentes principais

A PCA é uma técnica estatística multivariada utilizada para reduzir o número de variáveis em um conjunto de dados em um número menor de componentes. Na prática, a partir de um conjunto de variáveis correlacionadas, a PCA cria componentes não correlacionados, onde cada componente é uma combinação linear ponderada das variáveis iniciais, e o peso é representado pelos autovetores da matriz de correlação entre as variáveis.

A ideia por trás da PCA é explicar a maior variação possível no conjunto de indicadores usando o menor número possível de fatores. A variância (σi) para cada componente principal é dada pelo autovalor do autovetor correspondente. Os componentes são ordenados em termos da variância explicada no conjunto de dados original, pois a PCA tenta colocar a maior quantidade possível de informação no primeiro componente, depois a maior quantidade restante no segundo componente, e assim por diante. Nesse sentido, sob a restrição de que a soma dos pesos quadrados seja igual a um, o primeiro componente (PC1) explica a maior quantidade possível de variação.

O segundo componente (PC2) é completamente não correlacionado com o primeiro componente e explica uma variação adicional, mas menor, do que o primeiro. Como a soma dos autovalores é igual ao número de variáveis no conjunto de dados inicial (n), a proporção da variação total no conjunto de dados original explicada por cada componente principal é igual a σi /n. Quanto maior o grau de correlação entre as variáveis originais nos dados, menos componentes são necessários para capturar a informação comum.

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