BOUGRINE, Hassan; ROCHON, Louis-Philippe; SECCARECCIA, Mario (Ed.). Intermediate Macroeconomics: theory, policy and competing perspectives. Edward Elgar Publishing, 2025.
Capítulo 01 - Mercado e Setor Público
1. INTRODUÇÃO
O provimento de recursos e rendas é o principal objeto da economia, pois estamos preocupados com o bem-estar das pessoas e com a sustentabilidade, bem como com a estabilidade da economia e da sociedade. Quanto à explicação do processo de provimento, a economia se divide amplamente em duas abordagens principais. Para a economia convencional, é o sistema de mercado privado, seguindo o mecanismo de preços (ou a lei da oferta e da demanda), que aloca todos os recursos e rendas escassos de forma eficiente. Consequentemente, espera-se que consumidores e produtores alcancem sua utilidade ou lucro máximos, desde que os mercados sejam competitivos e, idealmente, livres de intervenções governamentais. A economia heterodoxa rejeita a visão dominante e oferece uma explicação alternativa segundo a qual, em economias capitalistas maduras, a produção da maioria dos bens e serviços é organizada pela empresa privada de propriedade da classe capitalista. Os produtos gerados são distribuídos tanto por instituições de mercado quanto por instituições não mercantis. As rendas — salários, lucros, dividendos, ganhos de capital e assim por diante — são geradas no processo de produção, que exige uma variedade de recursos (trabalho, materiais, recursos naturais e monetários) e resulta em uma gama de produtos a serem convertidos em valores monetários denominados em moeda estatal. A distribuição de rendas entre diferentes classes da população depende em grande parte das relações sociais e dos arranjos sociais, como leis, normas e convenções.
Uma das questões espinhosas da economia tratadas neste capítulo é a seguinte: o sistema de mercado privado e o setor público são rivais ou complementares? A seguir, examinaremos primeiro a visão convencional, com foco na forma como uma economia capitalista é concebida e teorizada em torno do sistema de mercado. A visão centrada no mercado da economia leva à ideia dominante de longa data de que o governo ou o setor público não deve interferir no sistema de mercado autorregulado. A seção seguinte explora a abordagem heterodoxa para uma economia capitalista, concebida como uma economia de produção monetária. Destaca-se que o Estado não é externo ao sistema de mercado. Mais importante ainda, o Estado é um construtor institucional, o criador da moeda estatal, um contribuinte para a demanda efetiva, um provedor de bem-estar e o estabilizador do sistema econômico.
Antes de prosseguirmos com as visões concorrentes sobre o sistema de mercado e o setor público, é necessário esclarecer os significados de governo e Estado que usaremos neste capítulo. Na maior parte da literatura convencional, o termo “governo” é usado de forma intercambiável com Estado ou com todo o setor público. Ao fazer isso, o governo é percebido como a autoridade burocrática que controla as políticas econômicas no interesse do público em geral. A noção convencional de governo não abrange o poder sociopolítico exercido por instituições como os tribunais e o parlamento. Economistas heterodoxos entendem o governo como um subconjunto do Estado. Toda organização deve ter um governo para poder realizar suas atividades de forma contínua. Corporações, sindicatos, associações comerciais, escolas, igrejas ou comunidades locais, por exemplo, têm um corpo governamental que deve ser diferenciado do Estado — a instituição dominante no setor público — que não apenas controla instrumentos de política, mas também atua em uma ampla gama de atividades econômicas e não econômicas, moldando ou dirigindo o processo de provimento de moeda estatal, bens e serviços, rendas, bem-estar, educação, saúde, cuidados a dependentes e assim por diante. Em resumo, o governo não deve ser equiparado ao Estado, pois este é um termo muito mais amplo. Caso contrário, caímos na posição dualista da teoria convencional (mercado versus governo), o que nos impede de compreender plenamente o papel do Estado no processo de provimento social.
2. A VISÃO CONVENCIONAL: O SISTEMA DE MERCADO OU O SETOR PÚBLICO
2.1 Economia de Troca Real e o Sistema de Mercado
A economia convencional é composta por várias escolas de pensamento econômico, como o novo keynesianismo, o monetarismo, a nova economia clássica e a nova economia institucional. Essas escolas invariavelmente compartilham uma visão específica da economia capitalista, na qual indivíduos racionais — consumidores, produtores, formuladores de políticas e assim por diante — fazem uma escolha ótima dos recursos escassos entre fins concorrentes (Robbins, 1935). Tal visão da economia capitalista é chamada de “economia de troca real”, para usar a expressão feliz de John Maynard Keynes (1973, p. 408). Por “economia de troca real”, entende-se que a atividade predominante que governa a alocação de recursos escassos é a troca de mercado em termos “reais” — por exemplo, a quantidade de bens, serviços, trabalho, capital, terra e outros ativos; salários reais e taxas de juros reais deflacionados pela inflação. Valores nominais ou monetários não figuram de forma destacada na tomada de decisões racionais.
A Figura 1.1 ilustra a economia de troca real (também chamada de diagrama de fluxo circular), uma variação da qual aparece na maioria dos livros-texto de economia convencional. A figura mostra que os recursos circulam entre os setores por meio de três mercados principais — ou seja, os mercados de produtos, de fundos emprestáveis e de trabalho (insumos). Cada mercado coordena trocas *quid pro quo* entre indivíduos que atuam em diferentes setores. As firmas do setor industrial produzem bens e serviços, fornecem-nos aos mercados de produtos e recebem receitas em troca. Os consumidores do setor doméstico compram bens e serviços disponíveis nos mercados de produtos. A fonte do gasto com consumo são os salários recebidos após fornecerem às firmas os insumos de trabalho, os quais são necessários para produzir bens e serviços. Da mesma forma, embora não esteja representado na figura, há outros mercados de insumos, como os de capital e recursos naturais, nos quais compradores (produtores) recebem insumos e vendedores (fornecedores de insumos) recebem rendas (lucros ou aluguéis). Como as firmas precisam investir em bens de capital, elas acessam o mercado de fundos emprestáveis e tomam empréstimos, que devem ser pagos com juros. As famílias (e outros indivíduos, incluindo firmas e governos) oferecem fundos emprestáveis na forma de poupança derivada de suas rendas. Em nível agregado, portanto, os gastos com consumo das famílias são iguais à receita das firmas; os custos com trabalho das firmas são iguais aos salários das famílias; e a poupança das famílias é igual ao investimento das firmas. Em resumo, a oferta cria sua própria demanda, e não o contrário, ou seja, a oferta agregada sempre é igual à demanda agregada — trata-se da lei de Say.
Nota: Q = f(L, K) denota a função de produção ou tecnologia, Q é a quantidade produzida, f é uma função, L são os insumos de trabalho, LD é a demanda por trabalho, LS é a oferta de trabalho, K são os insumos de capital, QD é a quantidade demandada, QS é a quantidade ofertada, p* é o preço de equilíbrio, U = f(Q1, Q2) é a função utilidade, Q1 e Q2 são quantidades de bens consumidos, I é o investimento, S é a poupança, r* é a taxa de juros real e w* é a taxa de salário real.
Fonte: Ilustração do autor.
Como o fluxo de recursos entre os setores é coordenado na economia de troca real? Economistas convencionais sustentam que, em todos os mercados, a alocação de recursos é coordenada por meio do mecanismo de preços. No mercado de produtos, a demanda e a oferta de bens se igualam ao preço de equilíbrio, isto é, a quantidade demandada no preço de equilíbrio é igual à quantidade ofertada nesse mesmo preço. Consumidores que maximizam utilidade fazem uma escolha ótima de bens, com base na função utilidade U = f(Q1, Q2), dada uma restrição orçamentária e os preços dos produtos (p*). Da mesma forma, firmas que maximizam lucros fazem uma escolha ótima de insumos, com base na função de produção Q = f(L, K), dadas a tecnologia de produção e os preços reais dos insumos (w* e r*), determinados nos mercados de insumos e de fundos emprestáveis, respectivamente. Como tanto a demanda quanto a oferta respondem às variações de preços, podemos dizer que um bem ou serviço nesse mercado, assumindo que seja competitivo, é alocado de forma eficiente no equilíbrio. Em outras palavras, tanto o fluxo de bens quanto o fluxo de dinheiro são coordenados pelo mecanismo de preços de mercado. Se os mercados forem imperfeitos, a alocação não é tão eficiente. Ainda assim, o comportamento de vendedores e compradores racionais continua sendo coordenado pelo mecanismo de preços ou pela lei da oferta e da demanda.
A mesma lógica se aplica a outros mercados. No mercado de trabalho (que representa todos os mercados de insumos), os fluxos de trabalho e de rendas salariais são governados pelo mecanismo de preços desse mercado. Se o salário for determinado exclusivamente pela oferta e demanda por trabalho, o mercado de trabalho converge para a posição de equilíbrio, LD(w*) = LS(w*). Os insumos de trabalho são alocados eficientemente, as firmas obtêm a quantidade ótima de trabalho para produzir bens, e as famílias recebem rendas salariais para comprar bens e serviços nos mercados de produtos. Da mesma forma, as firmas financiam seus investimentos tomando empréstimos no mercado de fundos emprestáveis à taxa de juros real de equilíbrio, e as famílias (e outros poupadores, como firmas e governos) poupam os fundos não utilizados para obter rendimentos com juros — isto é, I(r*) = S(r*). Consequentemente, os fundos emprestáveis são alocados eficientemente se o mecanismo de preços for deixado livre de interferência.
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